25.2.17

Ritual do Café

Foi apenas outro dia na vida: acordei, descansada, organizei meu espaço como todas as manhãs. Me levanto do meu colchão posto no chão na intenção de aliviar dores; abro as persianas, velhas e de madeira. Me olho muitas vezes no espelho: reprovando e aprovando, ora minha bunda flácida, ora meus ombros que parecem despontar alguns indícios dos resultados da dieta.
Me olho nos olhos; inchados, pequenos, porém desenhados. Avalio minha pele, resultado do dinheiro gasto em cremes anti-idade, comprados exatamente para períodos: um para o dia, outro para a noite.

Um giro de 180 graus, e abro a porta da cozinha: sou golpeada por um grande bafo quente - lá fora é o Inferno sobre a Terra. Resistente, ligo o registro de gás e acendo o fogo. Separo a caneca branca comprada em uma lojinha descolada de São Paulo. Agarro o coador de pano, já encardido pelo o uso. Com uma mão busco o pote do café - café brasileiro, sem dúvidas. E outra vez então, me detenho em pensamentos sobre a quantidade.
É absurdo como ainda sonolenta, minha memória se ativa cotidianamente a relembrar comentários x de uma colega de trabalho: "minha mãe sempre disse que são duas colherzinhas cheias". Claramente tal comentário me marcou, eu que sempre duvidei das medidas. Devaneio mais um pouco, em segundo plano, sobre o ritual de meu avó ao fazer café pelas manhãs. Guardo e perpetuo muitos hábitos aprendidos na infância, menos o do preparo do café. Devaneio ainda um pouco mais, em terceiro plano, sinto uma culpa frágil por não seguir esse ritual. Talvez por isso ainda duvide quanto pó de café colocar.

Diferentemente de meus avós, não deixo a água ferver: aprendi já grande, pela internet, o ponto exato de ebulição. Me entrego aos devaneios, e sigo remontando na memória o ritual do café...

Eram já as quatro ou cinco da manhã. Meu avô que dormia na sala, abria as janelas e ficava aí, observando não sei o que. Talvez o céu, escuro por despertar. Talvez o movimento das primeiras pessoas que surgiam na rua, a caminho de suas rotinas. Ou falava com Deus. Não sei.
Minha mãe, sempre temerosa, desaprovava, dizia que meu avô espiava bandidos do bairro.
Quinze minutos após a contemplação, se dirigia o velho para a pia: enchia uma leitera velha sua com um pouco mais de um litro de água. Agarrava um filtro de plástico, onde encaixava o filtro de papel, e logo depois, completava com algumas medidas de café.

"Quantas medidas eram?", "Quantos gramas seriam? Três colheres de sopa? Ou quatro?".
Levo comigo essa dúvida, pois nunca lhe perguntei. "Vô, quantas medidas o senhor usa?". Distante e fria, nunca o consultei.
E levemente me invade essa culpa frágil, esse lamento pela oportunidade perdida. Sentimental me coloco por minutos, às vezes manhãs inteiras.
Todo esse universo e memórias se desenrolam em segundos, em frações de segundos. Tudo isso em quanto estou coando meu próprio café, em outra cidade, outro ano, sob outro espírito.
O velho, por hábito, esterilizava a garrafa térmica com água indevidamente fervida.
... Faço uma pausa num esforço de lembrar... Vertia aos poucos a água fervida, indevida, sobre o pó de café, enquanto o cheiro de café invadia o resto da casa, nos acordando: "te apressa a comprar pão quente, Patrícia!", e entra minha avó. Detenho essa memória, pois a carga é grande para apenas mais uma manhã na minha vida.

Meu café já preparei - estou a ponto de adoçá-lo. "Deveria também esquentar o café já coado?", "Não, é indevido". E assim vou reformulando a prática, desmontando o hábito, com o simples ato de passar um café.

E como meu avô adoçava o café? Com açúcar. Ele jamais usaria mel como eu, aqui, em outra cidade, outro ano, sob outro espírito.

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25/Fev/2017 - Buenos Aires, Argentina - 01h12

23.2.17

Dinamo

A Roda gira
- já não lamento mais.

Quando abaixo, quando vazia, que farei?

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23/Fev/17 - Buenos Aires, Argentina - 14h31